“No fim-de-semana entre o Natal e o fim do ano fui, com pessoas amigas, espreitar "a noite" da Baixa. Já conhecia o Maus Hábitos e o Pitch, na Rua de Passos Manuel, gosto do Café Lusitano, na Rua de José Falcão, mas ainda não tivera oportunidade de visitar os espaços que têm sido inaugurados, ultimamente, na zona a que dantes se chamava das Carmelitas. Começámos pelo já famoso Plano B, na Rua de Cândido dos Reis, no espaço magnífico onde André Viana teve a sua galeria e mesmo por baixo das salas nobres do Club Portuense, onde a frequência e a dança são outras. Gostei imenso do conceito, com espaços dedicados a géneros diferentes de música, e também da freguesia, jovem e animada. Por volta das duas da manhã, quando se apinhavam já dezenas de pessoas à porta, resolvemos dar lugar a outros e seguimos para a Rua das Galerias de Paris onde, depois de espreitarmos o Café au Lait, mesmo em frente à Galeria Nasoni, entrámos na Casa do Livro, que a essa hora já estava, também, a rebentar pelas costuras.Não nos apercebemos, nesses locais, da presença das célebres máfias calabresas, nem de qualquer rusga da ASAE. Pelo contrário, abandonámos os automóveis no parque da Praça de Lisboa, que por acaso bem podia proporcionar um tarifário mais interessante àquela hora tardia, e circulámos a pé, em perfeita tranquilidade, por ruas bem iluminadas e frequentadas, que ainda há poucos anos eram, à noite, poisos meretrícios dos quais só resta, como vestígio, uma extraordinária, muito iluminada e certamente contumaz pensão. Nos locais onde entrámos fomos muito bem atendidos, cruzámo-nos com pessoas que conhecemos e, felizmente, também com muitas outras que desconhecemos, e ouvimos muito boa música como convém e é tradição do Porto. Naquela noite, ainda se fumava por todo o lado e, apesar de eu já ter abdicado desse vício, senti que estava, também, a despedir-me de um pouco da minha liberdade. Infelizmente, não se trata de um acesso tardio de nostalgia. Temo bem que a aliança desse novo fascismo proibicionista com o fundamentalismo higienista e o histerismo securitário resulte numa mistura bem mais perigosa, para todos nós, do que os efeitos nocivos do fumo do tabaco, as sequelas das salmonelas ou a improvável hipótese de sermos apanhados no fogo cruzado de um qualquer ajuste de contas... Ainda assim, fiquei animado com esta peregrinação nocturna, pois pude confirmar que o centro, com destaque para aquela zona da cidade que se estende até à Praça de Parada Leitão (com o seu "Piolho" sempre a transbordar de gente nova), foi adoptada pelos noctívagos e é hoje o palco principal da animação nocturna portuense. Paradoxalmente, esta tendência só foi possível pelas características arquitectónicas dos edifícios e o urbanismo da zona serem adequados a estas actividades e porque, com a desertificação, deixou de haver população residente. É o contrário do que acontece nas zonas mais densas, como a Ribeira, e principalmente nas que são mais povoadas, como a Foz Velha, onde os estabelecimentos de diversão nocturna e os residentes convivem muito mal. Claro que seria um desperdício se aquela zona nobre da cidade se quedasse, apenas, por esta sua nova vocação lúdica, mas, felizmente, há sintomas de uma apetência para aquelas ruas por parte de actividades diurnas de comércio e serviços. Enquanto se espera pela nova Praça de Lisboa, nota-se que aqueles quarteirões já não dependem da velha mas sempre elegante Livraria Lello e da heróica tenacidade dos Armazéns Marques Soares, para atraírem clientes. Há lojas novas e rumores de transacções imobiliárias e de projectos que poderão trazer um novo impulso a um dos mais importantes pólos do comércio tradicional. Se estas ruas, que fazem parte do eixo Cedofeita-Clérigos, recuperarem a sua energia e se as coisas também correrem bem do lado oriental da praça, com o novo Bolhão em articulação com Santa Catarina, o renascimento do comércio na Baixa deixará de ser apenas um velho e improvável sonho.”
Rui Moreira (Indagações), in Público (06/01/2008)
*Na fotografia (retirada, aqui, no Baixa do Porto) a Casa do Livro, na Rua das Galerias de Paris.
3 comentários:
são pedaços de todos nós que estão (des)critos neste texto*
Eu vi o Rui Moreira, com uma companhia linda por sinal. Mas ele tem um olhar... Tive vontade de lhe dizer que tenho muita admiração por ele.
Ainda me falta visitar alguns dos locais aqui descritos. É muito bom ver o coração da nossa cidade a renascer com a abertura destes novos espaços. A visitar num futuro próximo. Abraço.
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